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A BAIANIDADE NO PULSO: A FITINHA DO SENHOR DO BONFIM

29/09/2020 Manuela Tchoe Dicas e Curiosidades

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 As fitinhas do Senhor do Bonfim presas à grade da famosa igreja. (Foto: Lucimar Marques).

O brasileiro que vive no exterior sabe que qualquer mimo vindo de nosso país faz o coração explodir de felicidade. Às vezes, basta 1 quilo de feijão preto para arregaçarmos um sorriso de prazer. Presentear alguém com a fitinha do Senhor do Bonfim é, portanto, um criador imediato de sorrisos e agradecimentos – mesmo que o presenteado em questão não saiba exatamente para o quê a fita colorida serve ou como usá-la. 

Encontrar diversos brasileiros em meus quinze anos de Alemanha me fez entender que, apesar de todos conclamarem o maior estado nordestino como a terra da felicidade, com a expressão sonhadora “ah, a Bahia!”, a grande maioria não sabe o que a fitinha do Senhor do Bonfim significa. Aliás, quantos baianos conhecem a origem da famosa fita? Confesso que, mesmo com uma fitinha no pulso, até pouco tempo atrás, eu não conhecia a origem da tradição, que, já de pequena, carregava: colocava a fita no braço esquerdo, fazia duas voltas e três nós, um para cada pedido, como deve ser. Mas explorar a origem destes pedaços de poliéster não me parecia necessário, pois lá estavam as fitinhas colorindo a Bahia, nos prometendo esperança de dias melhores, um pedaço de Bahia pulsando junto de cada um que as amarra e espera que caiam, naturalmente. Saber de onde vinham me parecia desnecessário. Bastavam a fé e a alegria do que elas simbolizam, algo que transcende a razão. 

Algo que ilustra bem o que o símbolo do Senhor do Bonfim significa para o baiano é o anseio de agradecer uma graça na igreja em questão. Lembro-me da insistência de minha mãe em agradecer dádivas na Igreja do Senhor do Bonfim. Obviamente, qualquer igreja serviria como mensageira de suas rezas. Aliás, qualquer lugar serviria para agradecer a Deus: afinal, Ele está em todo canto! Mas a teimosia materna era tremenda – tinha que ser a Igreja do Senhor do Bonfim, pronto e acabou! Tínhamos que visitar a Sala dos Milagres, com ex-votos –  fotos, quadros, imagens esculpidas em cera – em agradecimento pela graça alcançada. E tínhamos que amarrar as fitinhas na grade da igreja e deixá-las flutuar com o vento da Colina Sagrada. Não há racionalidade nesse ato, só fé. 

A busca das origens desse símbolo baiano começou quando, ironicamente, retornei à Bahia como turista. Meu marido me perguntou qual a diferença entre Jesus e o Senhor do Bonfim, como o sincretismo funciona e, é claro, sobre as fitas e por que colocá-las no braço. O que ele achava mais esquisito era que eu não cortava a fitinha quando ela ficava velha e, convenhamos, um tanto feiosa. Percebi que, quando estamos na nossa própria terra, por vezes não precisamos de explicações ou teorias – basta saber que esses simbolismos existem e seguir as suas tradições. 

Ainda assim, veio o chamado para entender de onde vêm esses costumes em cujo por que, como ou onde eu nunca havia parado para pensar. Fomos na linda Lavagem do Senhor do Bonfim num dia abafado de janeiro e amarramos a fitinha no pulso com três desejos, cada. Algum deles se realizou? Sei lá! Mas entender de onde vêm essas tradições foi o primeiro passo dessa baiana pródiga. 

 

A igreja e a lavagem

Tudo começou com um pedido e uma promessa. No meio de uma forte tempestade, o capitão-de-mar-e-guerra da marinha portuguesa Theodózio Rodrigues de Faria prometeu que, caso sobrevivesse, traria para o Brasil a imagem de sua devoção, diretamente de Setúbal –  a do Senhor do Bonfim. Segundo a fé católica, essa é uma figuração de Jesus Cristo venerado, na visão de sua ascensão. Assim, veio a réplica da representação do santo, em 1745, que foi abrigada na Igreja da Penha, até o término da construção da Igreja do Senhor do Bonfim. 

A famosa lavagem da igreja começou em 1773, quando escravos eram obrigados a lavar o santuário para a festa do Senhor do Bonfim, comemorada no segundo domingo de janeiro. Já que os escravos eram forçados a seguir o catolicismo, o sincretismo foi a forma encontrada para manter as suas tradições e a fé nos orixás. Com o tempo, adeptos do candomblé identificaram o Senhor do Bonfim como Oxalá. Na época, o sincretismo era visto com preconceito e desconfiança. A Arquidiocese de Salvador proibiu a lavagem da parte interna da igreja e transferiu o ritual para a escadaria. 

Felizmente, a união entre catolicismo e candomblé, duas religiões que andam de mãos dadas, se tornou inerente à cultura baiana. Hoje em dia, as baianas vestidas do tradicional branco despejam água perfumada nos degraus e no adro da igreja, ao som de toques e cânticos africanos, o que se transformou numa das maiores tradições soteropolitanas.  

Cortejo rumo à Lavagem do Bonfim. (Foto: Lucimar Marques).

 

A tradicional baiana com suas vestes brancas e miçangas ao redor do pescoço. (Foto: Lucimar Marques).

 

As fitas

As fitinhas vieram apenas no século 19 e serviam para angariar recursos para a igreja, a partir de 1809. Foram criadas pelo tesoureiro da Irmandade Devoção de Nosso Senhor do Bonfim, Manoel Antônio da Silva Serva, que também era livreiro, editor e tipógrafo. 

Ainda assim, na época, o formato das fitinhas era diferente do atual. Conhecida como “medida do Bonfim”, ela media 47 centímetros de comprimento, o tamanho do braço direito da estátua de Jesus Cristo (ou Senhor do Bonfim), que está na basílica. Há pesquisadores que afirmam que as fitas eram de seda e não eram usadas no pulso, mas, sim, nos ombros, pescoço ou em chapéus. Além disso, de coloridas,  elas não tinham nada! Inicialmente, eram brancas, com acabamento em tinta dourada ou prateada. Também não eram baratinhas, afinal, eram de seda! Este formato da fitinha se estendeu até a década de 1940, quando o acessório puramente religioso desapareceu. 

A indústria do turismo ressuscitou as fitas, coloridas a partir de então, na década de 1950. O aspecto milagroso talvez tenha sido um “golpe“ certeiro de marketing, com a criação da tradição de três pedidos. Aliás, alguns pesquisadores argumentam que tal tradição tenha sido importada de outros pontos turísticos como a Fontana Di Trevi, em Roma. Afinal, basta jogar uma moedinha e fazer um pedido, certo? A lógica é a mesma!

Mas transportar as fitinhas para a posteridade e a fama se tornou possível quando foram associadas à Lavagem do Senhor do Bonfim. As diferentes cores simbolizam cada orixá: o azul claro, de Yemanjá; o amarelo, de Oxum; e o vermelho, de Iansã. Ou seja, mais um aspecto que engloba o sincretismo. 

A partir desse momento, as fitinhas se tornaram parte da cultura baiana, mesmo que a basílica não as venda mais. Aliás, todas as fitas amarradas nas grades da igreja são queimadas numa cerimônia católica, a cada três ou quatro meses, dando espaço para novas fitinhas – e novos pedidos e sonhos. 

 

Como realizar pedidos (quer dizer, usar as fitas)

Diz a lenda que as fitas devem ser presenteadas – e não compradas – antes de colocá-las no pulso ou no tornozelo. Basta dar três nós e fazer um pedido para cada nó. Tem gente que faz um pedido só. Além de fazer o pedido com fé, é preciso manter segredo absoluto, afinal o que se pede fica entre você e Deus. As fitinhas também podem ser benzidas na Igreja do Senhor do Bonfim. 

Então, o segredo é esperar: deixar a fita se desgastar até se soltar do pulso no momento certo, pois, para realizar sonhos, é necessário um tiquinho de paciência, sacrifício e tempo, não é mesmo?

Seguindo a tradição, eu amarro uma das fitinhas no pulso esquerdo e faço meus três pedidos, em segredo. Não é um gesto religioso para mim, mas um exercício de fé e, principalmente, uma forma de carregar um pedacinho de Bahia e de Brasil no pulso, onde quer que eu esteja.  

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Manuela Tchoe

Escritora baiana, vive desde 2005 na Alemanha, onde trabalha como executiva de marketing. É autora da coletânea de contos "Ventos Nômades" e do romance "Encontro de Marés". Também escreve sobre a vida de imigrante, viagens e literatura no seu blog pessoal "Baiana da Baviera".