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CANTANDO, TOCANDO E DANÇANDO COMO QUEM AGRADECE

13/08/2020 Felipe Tadeu Arte e Música

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A cantora e compositora Tetê Espíndola em sua casa. (Montagem fotográfica de Edson Meirelles, contracapa do álbum "Piraretã").

A música brasileira sempre foi, particularmente, um campo muito propício para que o florescimento da consciência de preservação do meio ambiente se tornasse uma causa querida na alma de seu povo. Se tomarmos, por exemplo, a Bossa Nova como estilo mais comumente associado ao que se convencionou mundo afora como “Brasil“, qual seria o cerne de sua mensagem, senão o louvor ao paraíso da Terra como cenário idílico para o amor? É ambientalismo explícito, nas sutilezas de um violão, não? Os estrangeiros sempre imaginaram isso, quando ouviam alguém como João Gilberto, cantando e tocando uma canção de Tom Jobim, compositor e eterno defensor da Mata Atlântica: há um lugar no Hemisfério Sul da América, onde, parece, o mundo é bem melhor.

Realidade à parte, a virtude que a natureza proporcionou para que a humanidade conseguisse ser feliz naquele canto do planeta – o Brasil –, com toda sua generosidade climática, sempre esteve lá. Muita arte foi produzida em agradecimento a isso, claro, mas desde que o homem é homem, o habitat quase sempre foi ignorado, excluído, exterminado mesmo, quando é chegada a hora da embriaguez material. Seja no Japão, no México ou na Austrália.  Na hora em que baixa a cegueira nos humanos, quando eles se deixam convencer de que é supremo ter-para-ser, aí só as artes para reestabelecerem o desprezado contato sagrado com a Terra. 

A imensa desigualdade social, uma das características perenes do país, induz os mais desesperados a buscar, no meio ambiente, a sobrevivência mesmo que nada duradoura. Irracionalidade. É por essas e outras, que a música se torna tão fundamental, como o oxigênio e a água. No Brasil, há muitas canções de amor ao planeta, e é nisso que vamos ressaltar: no fato de a música servir como veículo para a sensibilização da sociedade, preenchendo a lacuna no plano da educação, da inexistência de cadeiras específicas nas nossas escolas, onde se ensinasse – rigorosa e democraticamente – o respeito à ecologia como prioridade.    

Inúmeras canções, músicas sem fim, permanecem na memória de todo aquele que ouvia rádio, no último século, no Brasil. Tem um samba magistral de Paulinho da Viola, compositor carioca, que atende justamente pelo nome de Amor à Natureza, e comove quem o conhece. Inesquecível é, também, a que Guilherme Arantes escreveu e se tornou muito popular por ter sido apresentada num festival de televisão, em 1981. O título é Planeta Água, e sua letra ressalta, com poesia, a importância vital de protegermos os rios, mangues, lagos, lagoas, cachoeiras e mares. A dupla Sá e Guarabyra, na década de 1970, obteve sucesso com Sobradinho, um protesto à radicalidade das construções de grandes barragens hidrelétricas, causadoras de trágicas transformações ecológicas, com alagamento de cidades inteiras, levando de roldão a história das populações ribeirinhas. A melodia, tocada por viola, gaita e sanfona, é um apelo à sensibilidade.     

 

O patrimônio ecológico de tantas canções

Do Mato Grosso, no Cerrado, bem no centro do Brasil, região rica em biodiversidade, vieram pelo menos dois músicos que sempre se engajaram pela boa causa da ecologia: Ney Matogrosso e Tetê Espíndola. Quem conhece a estética de seus trabalhos, percebe o quanto a natureza é a seiva de suas mensagens. O intérprete, que se revelou pela banda Secos & Molhados, gravou, por exemplo, logo no começo da carreira solo, América do Sul, autoria de Paulinho Machado.

Já Tetê Espíndola, que surgiu em no quarteto Lírio Selvagem, formado com os irmãos Alzira, Geraldo e Celito, é um ícone do cancioneiro ambientalista. Seus raros registros vocais e a especial percepção dos cantos dos pássaros nativos, estiveram do lado das entidades de preservação da flora e fauna. O poeta concretista Augusto de Campos, ao ouvir Piraretã, escrita por Tetê e Marcelo Ricardo, afirmou em texto de apresentação do seminal álbum Pássaros na Garganta, de 1982: „Ela domina a articulação. Suas inflexões estão cheias de toques sutis e achados imprevistos. Vejam como ela faz fluir, sinuoso, o rio Cuiabá na canção Piraretã, e faz nascer matas mágicas do seu canto, entre jaguatiricas e boitatás, brilhos e barulhos da noite“.

As multidões de passarinhos que ainda existem no Brasil foi inspiração para outra dupla, Chico Buarque e Francis Hime, em Passaredo, um clássico, gravado em 1976. Para referir-se às diversas espécies de aves das matas brasileiras, Chico não abriu mão de recorrer ao dicionário. Já o pernambucano Luiz Gonzaga e o cearense Humberto Teixeira viram em outra ave –  a asa-branca – motivo para cantar contra a desertificação do Nordeste brasileiro. E isso, lá em 1947. 

Maria Bethânia, baiana de Santo Amaro da Purificação, cantou o samba composto por seu irmão Caetano Veloso, exigindo respeito ao rio que corta a cidade natal de ambos, que minguava a cada ano, vítima da ganância e da estupidez

 

A imprescindível sabedoria dos índios

A cantora e compositora cearense Marlui Miranda desenvolve, desde 1974, uma preciosa pesquisa sobre a cultura indígena e tem gravado álbuns que ajudam a compreender a forma de vida dos povos da floresta. Os índios da região do Amazonas podem ser perfeitamente considerados o traço mais nobre da cultura de convivência harmoniosa entre o humano e a natureza.

Todas os povos silvícolas, 

todas as tribos espalhadas pelo mundo  

deveriam estar protegidos pela 

Organização das Nações Unidas 

como patrimônio da humanidade!

 

Ainda que o trabalho de Marlui Miranda não tenha a mesma visibilidade por parte de quem só acessa as mídias tradicionais, ele nos orienta – tanto quanto um livro de Darcy Ribeiro, uma sinfonia de Villa-Lobos, uma palestra de Ailton Krenak, um ensinamento deixado por Chico Mendes – rumo a um lugar onde prevaleça o respeito à natureza, legado maior da vida, que nos autoriza até a acreditar numa existência divina, suposta pelos homens. Seu disco 2 Ihu Kewere: Rezar, lançado em 1997, é um documento importante para que a sociedade brasileira preserve a cultura indígena, também por uma razão ambiental. 

Marlui Miranda - incansável pesquisadora da música dos povos indígenas, ecologistas por natureza.  (Capa de seu álbum de 1997).

São eles, os índios, os principais anjos-da-guarda da extensa Amazônia.  Deste álbum gravado junto à Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, de seu Coral Sinfônico e da IHU, produzido por Rodolfo Stroeter, do selo Pau Brasil, dedicado por Marlui aos povos Tupari, Macurap, Urubu-Kaapor, aos remanescentes do Aruá e também ao jesuíta José de Anchieta, destacamos a faixa Comunhão. 

A música há de nos aperfeiçoar, para que finalmente entendamos a Terra como mãe: cantando, tocando, dançando, como quem agradece. O mineiro Beto Guedes, em parceria com o niteroiense Ronaldo Bastos, compôs O Sal da Terra, canção que, sobretudo em tempos de pandemia, serve como farol para reiventarmos a civilizaçao – que seja, agora, muito mais verde, é claro!   

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Felipe Tadeu

Jornalista freelancer e produtor radiofônico do Radar Brasil, programa bilíngue alemão-português que vai ao ar mensalmente pela Radio Darmstadt, Alemanha. Trabalhou para a rádio e para o site da Deutsche Welle por mais de quinze anos, tendo colaborado também para a Cliquemusic e o Jornal Musical, editados por Tárik de Souza. Escreveu para as revistas alemãs Jazzthetik, Humboldt, Tópicos e Matices, para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, além da Radio Hessischer Rundfunk 2 e as publicações brasileiras International Magazine e Outracoisa, dentre outras. É pai do Gustavo.