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CORES E FORMAS DA ARTE NAÏF

23/01/2021 Mazé Torquato Chotil Arte e Música

As origens da pintura primitiva e sua expressão por artistas brasileiros 

Segundo o dicionário francês Larousse, naïf quer dizer natural, espontâneo, sincero. O nosso Aurélio emprega-o para o artista e para a arte, especialmente a pintura, aquela desvinculada da tradição erudita convencional e da de vanguarda, e que é espontânea e popularesca na forma sempre figurativa, valendo-se de cores vivas e simbólicas ingênuas. 

Encontramos o termo naïf no Salon des Independents (Salão dos Independentes), de 1886, em Paris, para se referir aos trabalhos de Henri Rousseau (1844-1910), também conhecido como Le Douanier Rousseau (O Aduaneiro Rousseau, por ter sido ele inspetor alfandegário), o mais célebre dos pintores do gênero da França*. Na época dos impressionistas, “Rousseau, pessoa ingênua, sem formação acadêmica, insistia em pintar. Foi acolhido pelos modernistas e convidado a expor seus quadros no salão dos independentes, eufemismo elegante para não dizer salão dos renegados. Rousseau era diferente, não se encaixava como impressionista. Foi chamado de pintor naïf!”, explica o especialista franco-belga Jacques Ardies, há mais de 40 anos no Brasil e proprietário da maior galeria de arte naïf de São Paulo, além de autor de dois livros sobre o tema**.

Capa do livro A Arte Naïf no Brasil II, de J. Ardies. Fonte: site da Galeria.

 

ANTES MESMO DA INVENÇÃO DA ESCRITA

A arte ingênua ou ainda primitiva existe desde que o homem desenha, pinta, grava e esculpe. Ela remonta à arte rupestre – inscrita em rochas durante a Pré-História – como se vê na gruta de Lascaux, no sudoeste da França, ou, ainda, na Serra da Capivara, no estado do Piauí, Brasil. Os pintores naïfs são autodidatas, não quiseram ou não puderam seguir uma escola de Belas Artes, mas, por teimosia, acreditam que podem pintar algo relevante. Sem orientação de professores, têm dificuldades, mas, aos poucos, com muita obstinação, acabam encontrando uma forma pessoal de se expressar. De pintores amadores se transformam em artistas, quando conseguem contornar as dificuldades técnicas e inventar a sua linguagem, expõe Ardies. 

De forma voluntária ou não, os artistas naïfs não respeitam as regras de perspectiva, utilizam cores intensas e têm uma preocupação com a emoção, ao retratarem o que sentem. O que impressiona o especialista francês é a enorme quantidade de artistas de grande talento que, cada um à sua maneira, exprimem as próprias lembranças. No seu entender, eles conseguem, como poucos, expressar suas emoções e, o mais interessante, é a arte que melhor expressa o sentimento de um povo. 

Se a França foi o berço da arte naïf com Rousseau, mas, também, com Camile Bombois, Beauchant, Vivin, Séraphine de Senlis, Andre Demonchy, Maurice Loirand..., ela se espalhou pelo mundo: Itália, antiga Iugoslávia, Bulgária... A antiga Iugoslávia se destacou na década de 1950 com artistas como Ivan Rabuzin, Josip Generalic, Anton Bahunex, Vecenaj, que expressavam o trabalho duro na terra e por usarem uma técnica ancestral da região, a pintura sobre vidro.

Em seguida, os pintores naïfs do Haiti tiveram uma atenção especial, a exemplo de Préfète Duffaut, Philomé Obin, Louis Joseph, interesse que foi decaindo à medida que pintavam quadros parecidos e repetitivos.

 

NO BRASIL, DE 1937 ATÉ HOJE 

Inicialmente, encontramos, no país, Emídio de Souza, Heitor dos Prazeres, Cardosinho, Wilma Ramos, Chico da Silva, José Antonio da Silva, Ivonaldo Veloso, Antônio Poteiro, Isabel de Jesus, Djanira da Motta, Iracema Arditi, Isabel de Jesus, para citar somente alguns. 

Certamente, o francês Lucien Finkelstein (1931-2008), que se instalou no país no fim dos anos 1940, nos seus 16 anos, foi importante para o desenvolvimento da arte naïf. Ele comprou seu primeiro quadro – Sambistas – de Heitor dos Prazeres, e não parou mais. Virou colecionador com um importante acervo. 

Em 1995, Finkelstein criou o Museu Internacional de Arte Naïf (MIAN), no Cosme Velho, no Rio de Janeiro (mesmo bairro onde morou nosso Machado de Assis), numa casa tombada, que serviu de ateliê para Eliseu Visconti (autor das pinturas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro), bem ao lado do bondinho que leva ao Corcovado. 

Com um acervo permanente de 6 mil pinturas de artistas de 120 países, a maior coleção do gênero no mundo, segundo especialistas. O museu, segundo Jacqueline Finkelstein, filha de seu criador, sem patrocínio ou apoio financeiro para manter a estrutura ativa, teve que encerrar as atividades em 2016, infelizmente. Uma boa notícia foi anunciada em outubro último: a criação do Mini Museu de Arte Naïf – o MIMAN –, na cidade de Paraty, litoral sul do estado do Rio de Janeiro, tendo Jacqueline Finkelstein como uma das curadoras. Com a proposta de apresentar telas de formato pequeno, o museu deve abrir suas portas em julho próximo. 

No estado de Goiás, existe outro museu, o Instituto Antônio Poteiro, fundado em 2011, com a finalidade de preservar a história e a obra do artista plástico e acolher, promover e divulgar trabalhos de outros artistas, incentivando novos talentos.  

Por outro lado, a Bienal Naïfs do Brasil, realizada há 30 anos, em Piracicaba, interior de São Paulo, também exerce um papel valioso na divulgação desta arte, atraindo artistas de muitos pontos do país, com o Prêmio Destaque-Aquisição, Prêmio Incentivo e Menção especial.  Sob a curadoria de Ana Avelar e Renata Felinto, a sua 15ª edição – récem-realizada de forma virtual, por causa da pandemia – premiou O Martírio de Nossa Senhora do Brasil, tela da artista Shila Joaquim (São Matheus-ES).

O Martírio de Nossa Senhora do Brasil, de Shila Joaquim. Foto: Isabela Matheus. Fonte: Sesc Piracicaba. 

Se vimos, depois dos primeiros anos, tantos artistas entrarem na história da arte naïf, a exemplo de Waldomiro de Deus, muitos outros estão trabalhando nela, hoje. Como no passado, eles passam ao largo da educação formal em artes visuais e encontram brechas em seus cotidianos de sobrevivência, como mulheres trabalhadoras nos próprios lares ou, ainda, herdeiros de uma tradição naïf da família. “São pessoas reunidas em coletividades para refletir e produzir artes visuais para além dos limites determinados, sejam eles estéticos ou espaciais. São pessoas que desejam produzir arte a partir de suas próprias convicções e não da retomada da linha histórica e excludente das artes visuais. Elas sempre existiram e estão por todo o país”, explica Renata Felinto, artista, professora e também curadora da bienal deste ano. 

Para Renata, na arte naïf, encontramos artistas que se expressam, criam a partir de uma variedade enorme de técnicas e de linguagens, para além da tradição da pintura. “Eu admiro muitas pintoras, muitas, mesmo. Destacaria, aqui, a vencedora da bienal, Shila Joaquim, que acompanho há anos e cuja temática feminina não aparece como um tema em voga, mas, sim, porque está presente na sua pesquisa. Bem como a Con Silva, que, há anos, tem debatido relações étnico-raciais em suas obras. Ou, ainda, a Carmela Pereira, que conheci com a Bienal e considero que temos de aproveitar essa mulher, para que seu trabalho seja conhecido, apreciado e adquirido”, completa a curadora da bienal de 2020.

A primeira vez que ouvi o termo ‘arte naïf’ foi na redação de um jornal na periferia oeste da Grande São Paulo, onde trabalhava como repórter, nos anos 1980. E quem o utilizou foi o pintor baiano Waldomiro de Deus, que depois de uma turnê pela Europa e de ter feito nome no mundo naïf, se instalou em Osasco, cidade daquela região. Ele tem obras repertoriadas em vários livros editados aqui na França*** e no Brasil****, assim como em diversos museus e colecionadores particulares.    

Catálogos e livro sobre Waldomiro de Deus. Foto: Mazé T. Chotil 

Segundo Jacques Ardies, o Brasil se destaca, hoje, internacionalmente, por possuir uma quantidade importante de ótimos artistas espalhados pelo país, que mostram uma arte criativa e ligada às raízes da cultura brasileira. Waldomiro de Deus, nos seus 76 anos, continua na paisagem da arte naïf brasileira, arrastou sua irmã Waldeci de Deus nos primeiros tempos e, depois, nos últimos 20 anos, sua mulher Lourdes de Deus. 

Viva São João, de Lourdes de Deus. Fonte: ilustração do livro Lembranças do Sítio, de Mazé T. Chotil.

Gosto deste estilo de pintura por pelo menos duas razões: suas cores vivas e o retrato de um Brasil profundo, passado ou presente. Um universo de festas juninas, de bumba meu boi, pau-de-sebo, mas também de questões sociais, como a deflorestação da Amazônia e a destruição de povos indígenas. 

Eis uma arte que é um convite a descobrir o país, suas regiões, suas culturas, suas cores...

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* Esta arte pode ser vista em muitos museus franceses especializados, entre eles Musée d’art naïf de Vicq (em  Ile-de-France), Musée International d'Art Naïf Anatole Jakovsky (em Nice); Musée d’Art Naïf et d’Arts Singuliers, Le MANAS (em Laval, cidade natal de Douanier Rousseau) e Musée des arts naïfs et populaires (em (em Noyers-sur-Serein).  

 

** A Arte Naïf no Brasil (1998) e A Arte Naïf no Brasil II (2014). Galeria Jacques Ardies.

 

*** Álbum mondial de la peinture naïveFourny, Max, Editions Hervas, 1990.

****  Os Pincéis de Deus - Vida e Obra do Pintor Naïf Waldomiro de Deus. D'Ambrosio, Oscar (2001); Waldomiro de Deus: 50 anos de pintura. Centro Cultural Correios (2012); Contando a arte de Waldomiro de Deus. Oscar D'Ambrosio. São paulo: Noovha América (2014). 

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Mazé Torquato Chotil

Jornalista, pesquisadora e autora. Natural de Glória de Dourados (MS), morou também em São Paulo. Doutora em ciências da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII, é pós-doutora pela École des hautes études en sciences sociales e vive em Paris desde 1985.