15/01/2020 Beatriz Mello Mulheres Brasileiras
Foto: Acervo Pessoal A. Yokomi
Andrea Yokomi não se abala com choques culturais, quebras de estereótipos, crises ou mudanças de rumo. Para esta engenheira brasileira, radicada na Alemanha, o diferente amplia os horizontes e as crises permitem buscar novos objetivos e obter novas conquistas.
Seu primeiro contato com o diferente aconteceu quando ainda era criança. Descendente de japoneses, recebeu seu primeiro choque cultural ao entrar na escola e ter uma imersão na cultura brasileira, muito mais afetiva e calorosa do que a hierárquica cultura japonesa, com a qual estava acostumada em casa. A adaptação foi rápida e a descoberta que o diferente amplia foi imediata.
Quando terminou o Ensino Médio, não sabia exatamente qual profissão seguir. Prestou vestibular de Biologia a Engenharia Elétrica (sua escolha final). A única coisa de que tinha certeza era sua vontade de sair de casa, estar novamente exposta ao diferente e ampliar, mais uma vez, seus horizontes. Fez isso inúmeras outras vezes durante sua trajetória. Foi assim quando se mudou para a França para estudar, até chegar à Alemanha, onde é responsável pelo desenvolvimento de carros e novas tecnologias automotivas. Em suas pesquisas mais recentes, desenvolve protótipos e soluções que irão impactar o futuro da mobilidade e serão implementadas nos carros autônomos.
Em entrevista exclusiva para o blog BRmais, esta engenheira brasileira fala sobre sua trajetória, como enfrentou choques culturais, driblou estereótipos e conquistou seu lugar. Andrea também nos conta mais sobre seu último projeto e como é fazer parte de uma equipe de desenvolvimento de carros.
Lidando com os choques culturais
Andrea, você é mulher, brasileira, engenheira, mora na Alemanha há 8 anos e desenvolve carros. Está longe de ser convencional. Como você chegou até aqui?
Eu nasci em São Paulo, cidade grande. Sou a caçula e tenho mais dois irmãos. Venho de uma família bem tradicional, de origem japonesa e, como consequência, com muitas regras e hierarquias. Eu cresci neste mundo nipônico, imersa nesta cultura, mesmo vivendo no Brasil.
Então, quando comecei a escola, tive meu primeiro choque cultural. Lá foi meu primeiro contato de fato com a cultura brasileira, mais afetiva e próxima. O japonês é mais frio, não tem abraço, não tem nem muita conversa. É tudo muito hierárquico. Então, desde muito pequena, aprendi a lidar muito bem com as duas culturas e estes choques culturais. Entendi que conhecer outras culturas e outras maneiras de pensar amplia nossos horizontes. No Brasil, nós conhecemos pessoas de diferentes lugares, diferentes culturas... acho que isso me ajudou a ser como sou e a que me desenvolvesse deste jeito, com vontade de conhecer o mundo.
Quais foram os seus passos para desbravar o mundo?
Sempre quis morar fora. Lembro que, quando fiz vestibular, prestei em muitos lugares. Passei em Campinas e fui fazer Engenharia Elétrica na Unicamp. Este já foi o meu primeiro passo para desbravar o mundo: sair de casa.
A partir deste momento, outras portas se abriram para mim. Na Unicamp, há muitos intercâmbios, o que permitiu que eu conhecesse muitos estudantes estrangeiros. No local onde eu morava, por exemplo, sempre tinha alguém de fora: italianos, holandeses, pessoas de todos os lados. E isso alimentava ainda mais minha vontade de conhecer o mundo.
Como você colocou esta sua vontade em prática?
A Unicamp me deu também a oportunidade de fazer um intercâmbio. Fui estudar Eletrônica na França. Era a realização de um sonho. Lá eu estudei, trabalhei, aprendi o idioma. Mais uma vez, encarei outro choque cultural. Foi difícil, mas, ao mesmo tempo, uma realização para mim. E, no final, deu tudo certo.
Você disse que sempre quis morar fora. Você sempre quis ser engenheira também?
Na verdade, não. Antes de entrar na faculdade eu não sabia o que queria fazer da vida. Prestei Biologia, Administração e Engenharia. Escolhi engenharia, pois acredito que é um campo bem versátil, com uma maior gama de possibilidades. Engenheiro pode trabalhar com qualquer coisa. Ideal para alguém como eu, que não tinha certeza sobre qual profissão seguir. Além disso, eu já tinha uma certa afinidade. Tinha feito colégio técnico.
Então ser engenheira foi um acaso?
Acho que fui sempre nadando conforme a onda. Estudei Telecomunicações no colégio técnico na época em que estava em alta. Veio a crise e não tinha mais emprego nesta área. Mudei. Na faculdade, estudei elétrica. Na França, esta área também entrou em crise. Então fui trabalhar com biotecnologia. Ajudei no projeto de desenvolvimento de chip para a área de biomédicas, com foco na detecção de câncer. Gostei desta área, mas, quando voltei para o Brasil, fiz um estágio na área administrativa. Não gostei. Eu gostava mesmo era de desenvolvimento. Pensei em trabalhar com pesquisa. Fiz uma iniciação científica, mas era muito teórico e burocrático. Além disso, a maioria das pesquisas demora muito tempo para ter um resultado prático. Queria algo que eu pudesse aplicar e ver acontecer.
O problema é que não tinha ideia de por onde começar. Comecei a procurar e apareceu: tive a oportunidade de trabalhar no Centro de Desenvolvimento da Ford em Camaçari (Bahia) desenvolvendo carros. Não imaginava que havia um centro de desenvolvimento de carros no Brasil. Assinei o contrato e fui. Eu não tinha nada a perder. Naquela época já havia entendido que, mesmo morando longe, minha família está sempre comigo. São Paulo é a minha base, meu centro, meu coração, mas eu sou do mundo.
Da Bahia para o Mundo
Como você foi parar na Alemanha?
Eu conheci meu marido, também brasileiro, em uma viagem de “mochilão” em Machu Pichu. Na época, morávamos em estados diferentes e, como eu não acredito em relação à distância, ele acabou arrumando uma oportunidade de emprego em Salvador e mudando-se para lá, porém ele não se adaptou. Então decidimos nos mudar novamente. Uma amiga me comentou da oportunidade de trabalhar no Centro de Desenvolvimento da Ford na Alemanha. Falei com Gustavo, ele topou e nós viemos.
Por dentro dos carros
Há pessoas que gostam de dirigir, há pessoas aficionadas por carros, mas não é comum a gente encontrar alguém que desenvolva carros. Como é a sensação de ver o carro que você ajudou a criar na rua?
É muito legal. Muito bacana. Eu trabalho dois ou três anos em um projeto. Até canso de tanto olhar para ele, mas, na hora que eu vejo o carro na rua, sempre falo: “Nosso bebê está na rua, bonitinho”. É como se fosse um filho mesmo. Uma parte nossa está ali, junto com ele. Ele é a concretização de nosso trabalho e suor. Adoro quando vejo as pessoas na rua falando e comentando sobre um dos carros que eu ajudei a desenvolver, mas, até ficar pronto, é um processo demorado. Exige paciência. O meu trabalho é como um quebra-cabeça, a diferença é que, no final, ele vira um carro.
Quantos carros você já desenvolveu?
No Brasil, trabalhei no desenvolvimento do Fiesta, da Eco Sport, do “Kazinho”. Eu tenho um carinho especial pelo Ka. Além de ele ter sido o primeiro carro que eu desenvolvi, ele teve um papel fundamental para a fábrica da Ford no Brasil e isso gerou um comprometimento grande de todos. Foi muito bacana.
E na Alemanha?
Na Alemanha, eu comecei trabalhando na área de qualidade, melhorando carros que já existem. Os consumidores alemães são muito mais críticos. Tem que ter material de muito boa qualidade nos acabamentos. Aqui eles têm BMW, Audi, Mercedes... os parâmetros são outros. Eles também se preocupam com a qualidade do som da abertura de portas, porta malas, capô, por exemplo. Tudo que “abre e fecha”.
Então, enquanto no Brasil o principal foco do desenvolvimento é o custo/benefício, aqui na Alemanha o foco é a qualidade. Por isso acabei trabalhando com melhoria de qualidade para agradar o consumidor em praticamente todos os carros lançados na Alemanha: CMax, Focus Antigo, Focus Novo, Galaxy, Fiesta, Ranger e, mais recentemente, com o Puma.
O Puma foi recém-lançado pela Ford na Europa. Conte um pouco mais sobre a sua participação?
Com o Puma, eu atuei no desenvolvimento desde o início mesmo. Trabalhei junto com os escritórios de design com o que chamam aqui de “direcionamento de água”, ou seja, no desenvolvimento de um design inteligente no formato do carro (desenho do carro) capaz de prever como a água será distribuída, evitando acúmulos. Por exemplo, para que, ao abrir a porta, o consumidor não tome um banho de chuva.
Necessidade de um design para direcionamento inteligente da água?
No Brasil isso não é tão perceptível, pois lá é sempre quente, então, mesmo quando há escoamento indevido de água, não faz tanta diferença. Mas aqui na Europa não. Tem neve e, com o clima gelado no inverno, ninguém quer se arriscar a sair molhado. Congela. Por isso tem muita reclamação do consumidor sobre este assunto. Porém, para consertar isso em um carro que já existe e está em produção é muito mais difícil; não é igual à melhoria do acabamento. É uma mudança estrutural, então, para evitar este tipo de problema no final, é preciso ser pensado desde o estágio inicial do seu desenvolvimento, no seu desenho mesmo. A gente fazia teste de laboratório. Colocava água no teto, via por onde ela passava, fazia protótipos, simulações virtuais... Foram vários anos de desenvolvimento para chegar no nível de inovação a que chegamos nas simulações virtuais e aerodinâmicas para prever, via dados, por onde a água vai passar.
E como estas novas tecnologias impactarão o futuro da indústria automobilística?
Para mim, estas tecnologias de simulações virtuais no auxílio do gerenciamento de água são fundamentais para o desenvolvimento dos carros autônomos. O acúmulo de água pode, por exemplo, prejudicar a visualização das câmaras e danificar sensores instalados no carro, impactando a identificação dos movimentos ao redor dele e diminuindo a sua autonomia.
Driblando os estereótipos
É difícil ser engenheira e brasileira na Alemanha, país onde a indústria automotiva é referência mundial? Ou isso nunca foi um problema?
No começo, ser brasileira foi uma barreira para mim. Tive que batalhar muito. Principalmente nos dois primeiros anos... porque o Alemão é desconfiado. Para você ganhar a confiança dele, você precisa provar o seu valor. Porém, uma vez que conquistei o meu espaço, ser brasileira não fez diferença nenhuma. Na verdade, foi até melhor, porque eu trago alegria, estou sempre sorrindo, sou muito brincalhona. Eu promovo um ambiente mais leve e social ao meu time de trabalho.
Mais complicado é ser engenheira mulher em um ambiente em que só tem homens. No departamento onde eu trabalho, por exemplo, 90% são homens. Então é mais difícil se manter firme e ser você mesma. Tem que ser feminina e um pouco masculina ao mesmo tempo.
Vamos falar mais um pouco sobre a mulher na indústria automotiva?
É necessário e urgente ter mais mulheres na área automotiva. Falta muito. Incorporar o olhar feminino tem um lado bastante positivo. Temos uma outra abordagem, no fazer e no convencer, que nos ajuda a chegar ao nosso objetivo de um carro mais adequado ao consumidor.
Claro que homens e mulheres possuem diferentes formas de lidar com as situações e que ambos contribuem, mas, até hoje, os carros desenvolvidos são pensados na grande maioria por homens e apenas para homens. Não tem o olhar feminino, que é muito importante. Tem carros que eu olho e digo: “Nossa... este aqui foi desenvolvido só por homens!”.
Você sente que há alguma mudança?
Acredito que este olhar está mudando, principalmente porque a indústria enxerga cada vez mais o consumidor. Já se sabe que as mulheres estão mais independentes, têm maior poder de compra e se tornaram decisores na compra do carro. Que bom que isso esteja acontecendo e que a indústria finalmente esteja reconhecendo esta mudança! O automóvel é parte fundamental do cotidiano feminino tanto, ou até mais, do que do cotidiano masculino. Por isso a necessidade do olhar mais empático que a presença de mais mulheres engenheiras no desenvolvimento dos carros poderia promover. Eu vejo que as mulheres que estão lá, trabalhando no desenvolvimento, já estão trazendo isso, porém não é fácil. Quando você, mulher, sugere algo novo, tem sempre alguém duvidando e pedindo a evidência. Coisa que não aconteceria caso um homem fizesse a mesma sugestão. A mulher precisa trabalhar muito mais para provar que está certa. Nossas propostas possuem muito mais pesquisas, dados e evidências.
Para encerrarmos
Quais traços da cultura brasileira melhor representam você?
Tenho a alegria, a afetividade e a habilidade de socialização - características muito presentes na cultura brasileira.
Algo mais que você gostaria de dividir conosco?
Não tenha medo. Vá com amor e com fé, que as coisas acontecem. Se você tem um sonho, algo que você quer muito, é natural ter medo, mas não deixe isso te paralisar. Às vezes, as coisas não acontecem do jeito que você imaginava, mas elas acontecem e, no final, a vida te surpreende.
Beatriz Mello é curiosa por natureza e publicitária e cientista social por profissão. Trabalhou em empresas de mídia como Globosat, Viacom e Discovery. Vive em Berlim, onde, recentemente, especializou-se em Liderança Criativa e fundou a “Tropical Intelligence- Insigthfull Data Storytelling”, uma consultoria de dados para indústria criativa. É uma brasileira de destaque na área de Dados e Conhecimento do Consumidor e escreve sobre outras mulheres que representam positivamente o Brasil.