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EDY LIMA É LITERATURA POR TODO CANTO E LADO, BARBARIDADE!

11/03/2021 Paula Botelho Literatura e Leitura

Mineiro também escreve sobre gaúcho, ora bolas. Porque a gente vive e aprende que a origem não importa. Por essas e outras, vou falar de uma escritora gaúcha que, em Minas, a gente diz que é um trem doido: Edy Lima. 

Edy completa 97 anos em julho próximo, e a homenagem à escritora será em Bagé, sua cidade natal, com todas as honras que lhe são devidas.

Seu percurso na literatura começa com o célebre A Vaca Voadora (1972), quando brilhantemente inaugura uma série preciosa de histórias para crianças.  

Muitos a conhecem por suas obras infantis e por ter sido a paixão de Mário Quintana, que para ela escreveu vários poemas. Também pelo apoio e encorajamento de Monteiro Lobato para que ela mergulhasse de cabeça no mundo da escrita literária e do jornalismo. Ao trazer a obra de Edy Lima ao conhecimento dos leitores, é inevitável assinalar sua inserção na literatura infantil e, sem dúvida alguma, sua importância na dramaturgia brasileira. 

E por aqui começamos. 

 

O CASO DE “QUARTO DE DESPEJO” 

A obra-prima da literatura de Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, completou, em 2020, 60 anos de publicada e será relançada pela Ática Editora, juntamente ao da peça teatral homônima, cujo roteiro é de Edy Lima. Na década de 60, a peça foi apresentada pela primeira vez, com roteiro da escritora e dirigida por Amir Haddad. Em 1961, apesar de premiada pela Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT), o espetáculo recebeu parecer contundente de Décio de Almeida Prado, então influente crítico de teatro paulista. 

Para Décio, faltou aprofundamento do tema e foi dada mais ênfase à comédia do que ao drama, “... ressaltando as brigas e bate-bocas da favela.” O crítico foi além, considerando ter faltado transformar Quarto de Despejo em arte teatral, embora Ruth de Souza, no papel de Carolina de Jesus, tenha imprimido intensidade ao drama, como consta no relato do Instituto Moreira Sales. Uma ponderação aqui merece espaço: diferentes participantes são dignos de nota na narrativa das críticas culturais. Em Quarto de Despejo, na visão de um crítico da época, a atriz principal, o diretor e a montagem.

 

CINEMA, TEATRO E TELEDRAMATURGIA 

No entanto, não acontece apenas no teatro. Guillermo Arriaga, escritor mexicano, conhecido no Brasil pelos roteiros que assinou nos três filmes de Alejandro Gozáles Iñáritu – Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006) – trouxe a discussão e a polêmica sobre a imperceptibilidade do roteirista no cinema, durante a 5ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Guillermo pôs em discussão a autoria de um filme e o papel do roteirista na criação de uma obra cinematográfica. Para Arriaga, a autoria dos longas-metragens que um roteirista escreve não pode ser apenas creditada ao cineasta. Arriaga, aliás, não considera apropriada a designação de roteirista porque se percebe como escritor. Concordância completa nesta discussão de Arriaga: Edy Lima é escritora e ponto final. Mas na peça que se remete ao livro de Carolina de Jesus, embora escritora do roteiro, aparece em um plano de pouco destaque, na visão do referido crítico teatral. Guillermo e Edy, em campos diversos que lançam mão de roteiros de escritores, são alguns dos muitos exemplos do que Pierre Bourdieu discute, com tanta propriedade, ao analisar a visibilidade e valor no mercado cultural. Sobre quem confere valor e desvalor às diferentes obras e pessoas envolvidas. 

Embora muitas críticas culturais concorram para o engrandecimento do valor de diferentes pessoas, a contribuição literária de Edy Lima no teatro brasileiro é digna de ser recuperada. Não apenas pela peça que trouxe a história e a literatura de Carolina de Jesus ao palco, como, também, por outros trabalhos. 

A Farsa de Esposa Perfeita é um bom exemplo. O espetáculo permaneceu em cartaz durante vários anos, sob a direção de Augusto Boal. Sucesso de público e crítica, recebeu  prêmio do Serviço Nacional de Teatro do 1º Concurso para Peças Teatrais, promovido pelo Instituto Nacional do Livro. O tema tratava das “intrigas e traições de uma mulher que faz de tudo para agradar a seu marido ao ponto de prostituir-se, tornando-se assim a esposa perfeita”, como discute Luciane Fagundes, em monografia sobre Edy Lima. Sua análise também apresenta uma passagem da entrevista da escritora ao jornal Correio do Povo, em 1976, sublinhando seu posicionamento feminista, ângulo importante de sua escrita: “A impressão que tenho é que os homens querem no casamento uma mulher tão dedicada a ponto que ela se anule em função da vida deles”. 

No final dos anos 70, Edy Lima assinou a novela Como Salvar meu Casamento, com Ney Marcondes e Carlos Lombardi,  da extinta TV Tupy. Protagonizada por Nicette Bruno e Gianfrancesco Guarnieri, a telenovela discutia a vida de uma dona de casa, mãe de dois filhos, e um marido infiel. A crise financeira da emissora de televisão determinou o encerramento da produção mesmo sem conclusão, a despeito do sucesso absoluto de audiência. 

A escritora Edy Lima. Fonte: Reprodução vídeo YouTube.

 

EDY E AS MULHERES 

A liberdade e a independência feminina guiaram sua vida. Os trabalhos de Edy Lima, tanto no teatro como na teledramaturgia, revelam que, desde sempre, ela mantinha, sob mira, a emancipação das mulheres. A começar pela saída de Bagé, cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul, para tentar a vida de escritora em Porto Alegre, em plena década de 40, claramente marcada por uma mentalidade conservadora em relação à mulher. 

Apesar daquele contexto, Edy evitava o que lhe parecia retrógrado, trazendo para o universo feminino temas ligados à promoção da autonomia, da emancipação, da participação e da afirmação das mulheres. Para Rosa Riche, em tese de doutoramento sobre a escritora, “as mulheres na obra de Edy, de uma maneira geral, são maduras, mães, tias e dificilmente aparece uma jovem casadoira. Quando aparece, essa mulher disponível para o casamento já tem filho, como no livro “Melhor que a Encomenda.” [...] Em Edy, não há conflito de poder entre homem e mulher. Ela é superior ao homem e não precisa competir com ele, pois seu lugar no espaço social está assegurado sem necessitar de confronto para conquistá-lo.”   

Também na década de 40, Edy foi uma das poucas figuras femininas no jornalismo, profissão então predominantemente de homens. Trabalhou no Jornal de São Paulo e no Diários Associados – neste último, durante duas décadas como editora de um caderno feminino, sempre incentivando a emancipação e a independência da mulher.

Sua visão sobre a importância do protagonismo feminino é perceptível em muitos de seus livros, que somam cerca de 50 títulos, a maioria de literatura infanto-juvenil. O mais famoso deles, A Vaca Voadora, já está na 32ª edição e fez tanto sucesso nos anos 70 que se tornou uma série, com os mesmos personagens vivendo diferentes aventuras. Também marcante neste livro é a irreverência – um valor para a escritora – por ser algo “tão fora do esquema de escrever pra criança, que havia uma surpresa quando lia; essa surpresa criava uma coisa muito agradável para as crianças”, como relatou em entrevista a Antônio Abujamra, no programa Provocações, exibido pela TV Cultura.  

 

Capa do livro A Vaca Voadora, de Edy Lima. Crédito: Reprodução. 

 

LITERATURA FÉRTIL E FECUNDA 

Os livros subsequentes ao A Vaca Voadora constituíram uma série.  A Vaca na Selva (1973), A Vaca Deslumbrada (1973), A Vaca Proibida (1974), A Vaca Submarina (1975), A Vaca Invisível (1976) e A Vaca Misteriosa (1977) compuseram a série que permaneceu no mercado literário por mais de 40 anos. As mudanças feitas pelas editoras no projeto estético e estrutural das obras contribuíram para uma maior circulação dos livros e sua permanência ao longo do tempo. Entretanto, é imprescindível reconhecer a força criativa da autora, uma vez que “...a fantasia e o insólito são elementos que fazem da série uma narrativa divertida e envolvente”, como também apontou Luciane Fagundes em sua monografia.

E investir no sonho é propósito fundamental. É necessidade que nos compele a tornar o mundo um lugar interessante de se viver. A construção do sonho, por outro lado, é fruto do trabalho do escritor, e requer a habilidade de “misturar o nonsense com um pouco do realismo do dia a dia e com um pouco do absurdo”, a fim de oferecer ao público infantil “uma ironia sobre o social bem irreverente”, como deixa bem claro em seus livros, e em um outro fragmento da entrevista a Abujamra.  

“Se a gente não ficar sonhando,

inventando, e passeando nesse sonho,

fica muito sem graça”.

                          – Edy Lima

 

Quem ainda não conhece a escritora decerto encontrará em seus livros infantis o compromisso com a fantasia. A Vaca Proibida rendeu o Prêmio Jabuti à escritora. Outros prêmios foram o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), do Serviço Nacional de Teatro (SNT) e o Troféu Lourenço Filho da Companhia Melhoramentos de São Paulo. 

Edy começou a escrever para crianças em 1945, e seu primeiro livro foi A Moedinha Amassada. Após a “série da vaca”, as histórias continuaram a se multiplicar, em particular a partir dos anos 80: O Poder do Superbicho (1979), Magitrônica (1980), Melhor que a Encomenda (1984), Brincando com Fogo (1985), Cobertos de Terra (1985), Flutuando no Ar (1985), Mergulho na Água (1985), Mãe Assim Quero pra Mim (1985), Como Pagar a Dívida sem Fim (1986), Os Patinhos Lindos e os Ovos de Ouro (1986), Lourenço Benites, Pisces in Aquario (1986), A Gente que ia Buscar o Dia (1987), Mãe que Faz e Acontece (1987), Bicho de Todo Jeito e Feitio (1987), Bobos e Espertos (1988), Presente de Amigo e Inimigo (1988), O Outro Lado da Galáxia (1990), A Gente e as Outras Gentes (1990), Pai Sabe Tudo e Muito Mais (1992), Papai Maravilha (1992), Linha Reta e Linha Curva (1993), A Escola Nossa de Cada Dia (1996), Pátria Adorada entre Outras Mil (1996), Índio Cantado em Prosa e Verso (1997), Ao Sol do Novo Mundo (2000), A Quadratura do Círculo (2005), Primeiro Amor (2005), História de Futebol (2006), O Caneco Dourado (2006), A Sopa de Pedra (2009), A Casa Assombrada (2011), Opiniões Irreverentes (2011) e A Vaca na 4ª Dimensão (2015), este último também parte da “série da vaca”.  

Merece destaque, ainda, o trabalho da escritora na adaptação de vários livros clássicos da literatura infantojuvenil. Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho, Memórias de um Sargento de Milícias, A Volta ao Mundo em 80 Dias, As Aventuras de Tom Sawyer, Os Miseráveis, O Guarani, Daniel na Cova dos Leões, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, Oliver Twist, Ilíada, Odisseia e outros muitos.   

Edy também tem livros traduzidos para o espanhol, italiano e catalão, além de ter trabalhado na produção de discos para crianças. 

 

JUSTA HOMENAGEM  

Durante a Semana de Bagé, de 10 a 17 de julho próximo, haverá um evento em homenagem à Edy Lima, com exibições e exposições on-line de sua vida e obra, além do projeto “Falando em Arte”, com Sapiran Brito, ator, diretor de teatro e ex-titular da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Bagé, que irá falar sobre a diversidade das obras da escritora e sua importância na literatura e na dramaturgia brasileira. 

Há muito o que admirar e celebrar. O trabalho de Edy Lima é, no mínimo, trilegal, como dizem os gaúchos. E, em “gauchês” bem claro, barbaridade. 

Salve, Edy Lima! Obrigada por seu legado. E que venham outras obras!  

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Paula Botelho

Doutora em Language, Literacy and Culture (Universidade de Maryland), mestre em Educação (Universidade Federal de Minas Gerais), tradutora certificada (Centro de Ensino Brasillis), reside nos Estados Unidos há quase 15 anos. Seus livros e textos discutem o bilinguismo, migração, português como língua de herança e a visão da imprensa americana sobre a cultura brasileira. Atualmente, trabalha com escrita e tradução, ensino de português para estrangeiros, como em oficinas de cultura brasileira e literatura para crianças brasileiro-americanas.