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MULHERES BRASILEIRAS NA LINHA DE FRENTE CONTRA A COVID-19

20/08/2020 Beatriz Mello Mulheres Brasileiras

O Brasil tornou-se um dos principais epicentros da pandemia da COVID-19. Depois de crescimentos constantes, atingiu, em julho, um platô de novos casos por dia e já ultrapassou a triste marca de mais de 3 milhões de casos e 100 mil mortos. Nestes quase nove meses de contato com o novo vírus, ainda pouco se sabe a respeito. Cientistas buscam entender como ele age em nossos corpos, e vacinas e medicamentos continuam em teste. Até mesmo quando se iniciará a queda da curva da epidemia no país ou se haverá uma segunda onda continua uma incógnita.  

Em meio a tantas incertezas, há, pelo menos, uma visão que parece estar muito bem consolidada: a importância do papel e liderança das mulheres no combate à COVID-19. Chefes de Estado como Angela Merkel, na Alemanha, e Jacinda Ardernna, na Nova Zelândia, tornaram-se exemplos de liderança mundial no combate à pandemia e são referenciadas como modelos a se seguir.   

No Brasil, a liderança feminina também se destaca. São cientistas, lideranças políticas, médicas, enfermeiras, auxiliares de limpeza, professoras etc.  Mulheres talentosas e empenhadas, na linha de frente de combate, enfrentando o próprio medo e insegurança, para que todos possamos sair desta, da melhor maneira possível.    

Aqui, três histórias que mostram como as mulheres vêm agindo contra a pandemia do século.  

 

Decodificando o vírus em 48 horas 

Quando o primeiro caso chegou ao Brasil, a equipe do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arborvírus (CADDE), composta por cinco mulheres e um homem, já estava preparada para identificar e decodificar o genoma do vírus.  

Em 48 horas, as biomédicas Jacqueline Goes, Ingra Morales, Flávia Salles e a farmacêutica Erika Manuli decifraram a amostra do primeiro caso do país e identificaram a estrutura do vírus. Este tipo de procedimento é importante para identificar a origem da pandemia e entender como o vírus é formado.  

Segundo a médica Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP e líder do projeto, a decodificação permite que se direcione, de uma maneira mais confiável, as pesquisas de vacinas e testes de diagnósticos. 

Aprendizados do Zika aplicados ao novo Coronavírus – A metodologia para a decodificação do vírus foi realizada pela jovem cientista Ingra Morales. Ela aprendeu a técnica na Inglaterra, em 2016, graças a um programa de bolsas de estudos, e aprimorou a metodologia, tornando-a mais barata e seu processo mais rápido e menos complexo. Assim, pôde aplicá-lo na decodificação do vírus Zika.  

Os aprendizados obtidos durante as pesquisas relacionadas ao Zika foram essenciais. Ingra foi incumbida de treinar todos os grupos brasileiros que lidam com esta metodologia de pesquisa e adaptar os procedimentos, diminuindo seu custo que chegava a R$ 1.000 para R$ 30. Assim, foi possível intensificar o número de amostras e tornar o método mais rápido e eficiente. 

Esta melhoria foi o que permitiu decodificar o novo Coronavírus em tempo recorde, quando chegou por aqui, e a eficiência da equipe se tornou referência para outros grupos de pesquisa ao redor do mundo.   

 

Palavras diretamente do front:  "Um dia a menos nesta pandemia"

Adriane Rodrigues Piva é enfermeira do centro cirúrgico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), interior de São Paulo, um dos polos mais avançados de medicina do país. Especialista em administração hospitalar e enfermagem do trabalho, afirma que a pandemia é o maior desafio que já enfrentou nos seus 30 anos de profissão e mais de 20 de centro cirúrgico e UTI. “Sem sombra de dúvida, é o maior desafio que enfrentei em todos estes anos de profissão. Este vírus tem gerado ansiedade e causa muito medo”, afirma. “Eu chego em casa e dou graças a Deus, um dia a menos nesta pandemia. Meu medo é ir trabalhar e não conseguir voltar”.  

A enfermeira Adriane R. Piva vestida com os equipamentos de proteção individual (EPI). (Foto: acervo particular).

Adriane sabe os riscos que corre. Mesmo com toda a proteção e cuidado que os profissionais na linha de frente mantêm, a exposição cotidiana ao vírus é muito grande, o que aumenta, consideravelmente, as chances de contaminação. Nestes últimos meses em que acompanha de perto a pandemia, Adriane já sofreu a perda de colegas de trabalho e de amigos próximos. Na Unicamp, três profissionais da saúde foram a óbito em decorrência da COVID-19.

Além disso, as incertezas sobre o tratamento e como o corpo vai reagir, juntamente às potenciais consequências de uma internação de longo prazo por quem conhece e acompanha a luta pela vida destes pacientes internados na UTI, e sabe das limitações das dificuldades de recuperação, torna o medo algo bastante palpável. “Sim, eles vencem a COVID, mas a que preço? Hoje, sabemos que o vírus é muito agressivo e ataca não apenas os pulmões, como se pensava antes, mas, também, tem impactos no sistema renal e hematológico. Em muitos casos, os danos dos pulmões são irreversíveis, enquanto outros terão que fazer hemodiálise para o resto da vida”, ressalta Adriane.

Uma nova rotina – Responsável pelo cuidado com os pacientes e pela organização dos turnos das cirurgias, Adriane conta que a rotina começou a mudar no final de janeiro, quando surgiram os primeiros relatos da nova doença causada por um vírus, ainda desconhecido.  

Até março, quando inapelavelmente a doença se instalou no país, houve uma transformação não apenas na rotina do centro cirúrgico, como na sua vida. Ela comprou roupas e sapatos exclusivamente para o trabalho e o uso dos equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras e viseiras, durante os plantões, foi reforçado. O uso de máscaras, por exemplo, acontece 100% do tempo em que se está no centro cirúrgico, isto é, das 7 às 14 horas. 

No centro cirúrgico, a rotina também mudou. Aliás, ela deixou de existir. As escalas das cirurgias e turnos da equipe de enfermagem coordenados por ela, antes marcadas com antecedência, hoje, são definidas no dia anterior, seguindo protocolos rígidos de triagem e testagem do vírus, o que fez triplicar o trabalho operacional. 

O cuidado com a higiene ao chegar em casa também foi redobrado, a ponto de retirar das paredes os objetos decorativos para evitar contaminação. A maior preocupação é como evitar a contaminação da sua família e pessoas ao seu redor. Como profissional da saúde que lida com infectados, sabe que o contato constante com o vírus aumenta as chances de se tornar também uma vítima. 

Machucado físico e emocional – Adriane mostra as marcas que o uso da máscara, por tão longo tempo, tem deixado no seu rosto. O machucado acima do nariz e nas maçãs do rosto é físico e parece pequeno. Maiores são os machucados psicológicos e emocionais – muitas vezes invisíveis – destes profissionais da saúde na luta contra a pandemia. 

Por se tratar de um novo vírus, anos de profissão e experiência são colocados à prova todos os dias. No início, as orientações e procedimentos mudavam sempre: o que valia para hoje não vale para amanhã. 

Hoje, já se sabe que alguns dos procedimentos instaurados, como o tratamento precoce com antibióticos e corticoides, ajudam.  Porém, a preocupação com a segurança da equipe, dos pacientes e dos familiares, além do medo e da ansiedade alimentados pela incerteza de quando tudo isso vai terminar, trazem novos desafios.

Adriane relata que, junto com a pandemia, viu surgir o preconceito. Os vizinhos já evitaram entrar no elevador, quando perceberam que ela estava lá. Ela não condena, sabe que é reflexo do medo que, assim como o vírus, paira no ar.   

O dom de cuidar e acompanhar a luta pela vida – Adriane afirma ter sempre contado com incentivadores e apoiadores do seu trabalho: a família. É nela que pensa toda a vez que o coração aperta. Lembra o quanto a mãe e a avó a inspiraram e apoiaram os seus primeiros passos. Conta como os irmãos, marido e filho a incentivam todos os dias e a fortalece para manter a certeza de que vai voltar para casa.  

Mas há outro grande motivador: o dom de cuidar. “Eu sempre gostei de cuidar do outro. Penso que poderia ser alguém da minha família, alguém que eu amo”. Ela também relata que se sente emocionada e não há nada que a satisfaça mais na profissão do que acompanhar a recuperação de um paciente.   

Mesmo tendo consciência da dificuldade e de que ainda é o começo, Adriane conserva o otimismo. Ela sabe que vai passar e acredita ser este um momento de transformação para todos. Aposta na valorização do profissional da saúde no final desta pandemia e, principalmente, acredita em uma mudança de perspectiva do outro mais humanizada.  

 

Viralizar conhecimento para evitar que o vírus se espalhe 

Desde 2018, a jovem cientista brasileira Izabella Pena é pesquisadora de pós-doutorado no Laboratório David Sabatini do Whitehead Institute for Biomedical Research do Massachusetts Institute of Technology (MIT), uma universidade localizada em Cambridge, Estados Unidos considerada dos maiores centros de pesquisa e tecnologia do mundo. Ela já estudou como problemas no metabolismo das células do cérebro podem causar epilepsia e, junto à sua equipe, aperfeiçoa técnicas que têm o potencial de ajudar a humanidade a encontrar soluções para o tratamento de doenças neurodegenerativas como o mal de Parkinson e a doença de Huntington.   

A cientista Izabella Pena. (Foto: Gretchen Ert. Whitehead Institute). 

 

Porém, em tempos de COVID-19, Izabella tem trabalhado de uma forma diferente. Ela é vice-presidente no Projeto ContraCovid, que oferece informações didáticas em quatro línguasespanhol, português, inglês e o crioulo haitiano, que impactam a comunidade latina dentro e fora dos Estados Unidos. 

Além disso, Izabella Pena, que foi destaque no site do MIT, tem um canal no YouTube destinado ao público brasileiro. Nele, fala, de maneira descontraída e informal, sobre dados científicos e descobertas sobre o vírus, pontos polêmicos no combate à COIVD-19 e seu tratamento, rebatendo afirmações falsas e dados não comprovados.   

Desmistificando a ciência – O objetivo é tornar dados científicos acessíveis para leigos, desmistificar o papel do pesquisador e combater as fake news que, de acordo com a jovem cientista, se tornaram um dos maiores problemas no combate à doença. “Em tempos de pandemia, acho fundamental levar ciência para as pessoas”, assegura a cientista, lembrando que muitos se contaminaram ao ingerir detergente, movidos pelo comentário de Trump de que isso mataria o vírus. 

Ela reconhece que, por muito tempo, a ciência se afastou do dia a dia das pessoas, publicando suas descobertas apenas em revistas especializadas. Acredita que o rigor científico é fundamental, mas também humanizar o pesquisador e aproximar a ciência do leigo. Divulgar as descobertas de maneira didática, para além das paredes dos laboratórios, é a saída para a valorização da pesquisa e o combate a notícias falsas. “Nós, pesquisadores e cientistas, precisamos aprender a utilizar o WhatsApp, YouTube, Twitter e as demais redes sociais para nos comunicarmos. É por lá que as pessoas estão se informando”, assegura.  

O sucesso dos áudios viralizados e as ameaças – Tudo começou sem querer, quando resolveu fazer alguns áudios contendo dados científicos, esclarecendo as mensagens da família, contendo afirmações distorcidas em relação ao vírus, no WhatsApp.  

Eles viralizaram, e, certo dia, recebeu de um colega que vive em Indiana, Estados Unidos, o próprio áudio, encaminhado por um padre da zona rural de São Paulo. Izabella percebeu, então, a importância e o poder da mensagem simples, objetiva e com base científica, no combate ao vírus, e como ela poderia ser impulsionada nas redes sociais.  

O sucesso dos áudios a motivaram a criar um canal no YouTube. Mais que poder incluir links das pesquisas e referências utilizadas durante suas explicações, a gravação feita em casa lhe permitiu revelar o lado mais humano do pesquisador, trabalhando dentro do laboratório. Outra vantagem é que, ao mostrar-se, dá exemplo de que há, sim, mulheres cientistas.    

Porém o sucesso trouxe um lado negativo inesperado. Ela atraiu seguidores, mas também haters, termo em inglês utilizado na internet para classificar quem pratica bullying virtual ou ameaça alguém, apenas por discordar de suas ideias e publicações. Os comentários negativos vão além de pôr em dúvida sua condição de pesquisadora e cientista e desqualificar suas realizações – ela já recebeu ameaças contra sua pessoa e contra sua família, mas não se deixou abater.

Amor, paixão e inspiração para seguir – Formada em ciências biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esta mineira de Belo Horizonte com carreira internacional consolidada, incluindo passagens pelas universidades e laboratórios reconhecidos na Inglaterra, Canadá e Estados Unidos, lembra que viu crescer seu amor pelos seres vivos no sítio da avó, onde tinha contato direto com a natureza.  

Mas foi na adolescência que conheceu uma grande paixão: o laboratório. Ainda durante o ensino médio, participou de um projeto encampado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que alunos eram convidados a passar as férias no laboratório da universidade, para entender, na prática, a vida de pesquisador. A experiência mudou-lhe a vida e definiu seu destino, nunca mais se afastou dos laboratórios. 

Embora seu percurso seja evidentemente de sucesso, Izabella garante que ser cientista mulher não é fácil. Barreiras existem. A escassez de modelos femininos de pesquisadoras e um ambiente altamente masculinizado é o cenário mais comum em diferentes partes do mundo. Ela cita, por exemplo, que seus colegas homens conseguem ter maior equilíbrio entre trabalho e família. Já as mulheres, caso queiram formar uma, precisam adiar tal propósito, pois conciliar as duas coisas significa renunciar a projetos no campo profissional. “Aqui, onde trabalho, se eu quiser ter filhos, tenho no máximo três meses de Licença de Maternidade. É muito pouco”. No caso de países como o Brasil, o agravante é a ausência de políticas públicas que incentivem a pesquisa cientifica, o que inibe ainda mais o surgimento de novas profissionais e limita as perspectivas.  

Ela diz que seu horizonte de possibilidades se ampliou quando morou e trabalhou no Canadá, país que não apenas confirma o papel fundamental das políticas públicas, como, também, se encontram mulheres do campo da ciência para se inspirar. Diferente de qualquer outro laboratório em que trabalhou, lá, ela era liderada por uma cientista. 

Esta inspiração foi fundamental para que enxergasse novos modelos e outras oportunidades. Também foi importante para confirmar aquilo que a motiva nesta profissão, o que reflete no seu empenho no combate à COVID-19. “A curiosidade por saber mais e a possibilidade de dividir o conhecimento adquirido, criando uma sociedade e um mundo melhor para todos é que me move e comove”conclui Izabella, com chave de ouro.   

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Beatriz Mello

Beatriz Mello é curiosa por natureza e publicitária e cientista social por profissão. Trabalhou em empresas de mídia como Globosat, Viacom e Discovery. Vive em Berlim, onde, recentemente, especializou-se em Liderança Criativa e fundou a “Tropical Intelligence- Insigthfull Data Storytelling”, uma consultoria de dados para indústria criativa. É uma brasileira de destaque na área de Dados e Conhecimento do Consumidor e escreve sobre outras mulheres que representam positivamente o Brasil.