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O SAGRADO ACARAJÉ, DO MUNDO PARA A BAHIA E VICE-VERSA

12/08/2021 Manuela Tchoe Turismo e Culinária

Conheça a origem, a história e as peculiaridades deste ícone baiano, que, além de iguaria regional, é alimento sagrado para religiões que nos chegaram da África. 

Fora do Brasil pela primeira vez, estive no Egito em busca do amor. Neste país antigo, provei uma delícia chamada falafel que, estranhamente, levou-me de volta à Bahia. Acredite: havia algo nesta iguaria, geralmente feita de grão-de-bico e famosa no mundo árabe, que se assemelhava ao acarajé, feito de feijão-fradinho e famoso no mundo baiano. Dei mais uma mordida naquele bolinho frito, cujo sabor, mais tarde, levou-me a uma deliciosa descoberta: era feito de feijão-fava. 

Assim, eu percebi que, apesar de o acarajé ter se tornado praticamente um sinônimo de baianidade, é também uma delícia que nasceu na África e atravessou fronteiras, fincando raízes no nosso Brasil. 

Foi na África Ocidental (Togo, Benin, Nigéria, Camarões), onde o acarajé dos iorubás se originou, influenciado pelo falafel árabe que, assim como no Egito, é feito de feijão. Do Golfo do Benin, o então àkàrà (também chamado de kosai, no norte da Nigéria, e koose, em Gana) chegou ao Brasil com a cultura das pessoas escravizadas daquela região. 

Desde então, o àkàrà era difundido no candomblé como oferenda para a orixá Iansã. No Brasil, o àkàrà se tornou acarajé, que significa “comer bola de fogo” (em iorubá, àkàrà significa “bola de fogo” e je quer dizer “comer”). De acordo com a Fundação Joaquim Nabuco, tal significado vem da história de Xangô (orixá da justiça, dos raios, do trovão e do fogo) com a sua esposa Iansã (orixá dos ventos e das tempestades):

Iansã foi à casa de Ifá (oráculo africano) buscar um alimento para seu marido. Ifá o entregou recomendando que quando Xangô comesse fosse falar para o povo. Desconfiada, Iansã o provou antes de entregá-lo ao marido e nada aconteceu. Chegando em casa, entregou o preparado a Xangô, sem esquecer de repassar as informações do Ifá. Xangô o comeu e quando estava falando ao povo, começaram a sair labaredas de fogo da sua boca. Aflita, Iansã correu para ajudá-lo, começando também a ter labaredas de fogo saindo da sua boca. Diante disso, o povo começou a saudá-los de grandes reis de Oyó, ou seja, grandes reis do fogo *. 

No Brasil, foram as chamadas “escravas de ganho” que criaram ou adaptaram as receitas de acarajé. Era também função delas vender mercadorias em tabuleiros para as patroas, como mingaus, cocadas e quitutes salgados. As primeiras baianas de acarajé repassavam uma grande parte do lucro para as suas proprietárias, mas podiam ficar com um pouco do que recebiam, o que lhes possibilitou sustentar suas famílias e até, eventualmente, comprar a própria liberdade, assim como investir em irmandades religiosas e financiar terreiros de candomblé.  

As crocantes bolas de fogo - os acarajés - recheadas com vatapá, camarão seco e pimenta.  Fonte: Tastemade.

COMIDA SAGRADA 

Para muitos, o acarajé é um lanche delicioso feito de feijão-fradinho e frito no azeite de dendê, recheado com camarão, vatapá, caruru e pimenta – se for do gosto do freguês. Agora, o que nem todo mundo sabe é que o acarajé é atrelado a outras tradições, marcadas desde o tabuleiro das baianas de acarajé, cujo aroma invade o ar da cidade a partir das 5 horas de todas as tardes, até o traje, que remete aos rituais do candomblé.  

Ao ser oferecido aos orixás, o acarajé não pode ser modificado, apenas frito, e preparado por filhos de santo. De acordo com o orixá, o acarajé tem tamanhos distintos: o maior e mais redondo é destinado a Xangô e os menores, para os obás (ministros de Xangô) e para os erês (entidades-criança intermediárias entre a pessoa e seu orixá). Para Iansã, são nove pequenos acarajés, quantidade que a indica como a deusa dos nove partos/filhos.  

 

O QUE A BAIANA E O BAIANO TÊM?  

O aspecto sagrado do acarajé tem uma ligação inabalável com as pessoas que o preparam. Para começar, o traje das baianas é característica dos ritos do candomblé, composta por turbantes, panos e colares de conta e miçangas, que indicam a sua iniciação religiosa. Se, hoje em dia, elas não necessariamente têm o candomblé como religião, devem, porém, respeitar a tradição e seguir a determinação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), segundo a qual a baiana deve portar a bata, a saia e o torço, e o tabuleiro tem que estar com todos os quitutes bem arranjados à vista e à disposição dos fregueses.

Símbolos tradicionais da baianidade, as baianas - e baianos! - servem, também,  bolinhos, cocadas e abarás.  Fonte: Reprodução/ Jornal Correio.

O ofício da baiana entrou no imaginário popular ao longo do século 20. Uma das canções compostas por Dorival Caymmi, na memorável interpretação de Carmen Miranda, pergunta “O que é que a baiana tem?”. Além do torço de seda, brincos de ouro, bata rendada, saia engomada e graça como ninguém – e ela também requebra bem! –, a resposta, incontestável desde sempre, é que a baiana tem é muito!

Cerca de 80% das baianas de acarajé são provedoras e chefes de família. Também são elas o motor de uma tradição baiana tão forte, que, até a Federação Internacional de Futebol (FIFA), reconhecida pelo poder (e corrupção) frente à Copa do Mundo, cedeu à pressão das baianas para que pudessem vender acarajé dentro da Arena Fonte Nova, exatamente como o fazem há décadas. 

A tradição do tabuleiro se mantém forte por, literalmente, ser repassada de geração a geração, de mãe para filha. O ponto da baiana é licenciado pela Prefeitura de Salvador e não pode ser vendido para outra pessoa. Ocasionalmente, são os filhos que tomam as rédeas das tradições, pois ser baiana – ou baiano – de acarajé é, essencialmente, uma atividade familiar. 

Aliás, vale ressaltar que aproximadamente 5.200 homens trabalham como baianos de acarajé pelo Brasil, o que corresponde a cerca de 3% dos cadastramentos na Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM).

Com o acarajé se popularizando além das fronteiras brasileiras – apesar de não ser a mesma coisa, sejamos sinceros –, existe a esperança de que ele seja declarado patrimônio mundial da humanidade, numa petição que seria feita pelo Brasil e Nigéria – país da África, onde este bolinho faz parte do café da manhã de muitos. Quem sabe, um dia?

O 25 de novembro é quando são celebrados o acarajé, as baianas e os baianos que produzem a tal delícia. Em verdade, deveríamos comemorar todos os dias, até porque o ofício das baianas de acarajé é considerado Patrimônio Histórico e Imaterial do Brasil.

 

O TABULEIRO DA BAIANA TEM MUITO MAIS QUE ACARAJÉ

A canção No Tabuleiro da Baiana, do compositor Ary Barroso, lembra que “no tabuleiro da baiana tem vatapá, caruru, mungunzá e umbu”. Mas, também, tem abará (a mesma massa do acarajé só que cozida em folha de bananeira), cocada da preta e da branca, bolinho de estudante (doce de tapioca frito recoberto de açúcar e canela) e passarinha (baço bovino escaldado, temperado e frito em azeite de dendê), que são os quitutes. Os acompanhamentos são o vatapá, o caruru e o camarão seco – e o molho de pimenta não pode faltar, né?

Se não estiver acostumado, cuidado ao pedir um acarajé “quente”. Isso não quer dizer que ele está saindo do azeite de dendê fervente, mas que leva pimenta. Então, caso queira provar o real sabor da “bola de fogo”, peça o acarajé “quente”, contrabalançando o seu ardor com uma cervejinha gelada e você vai experimentar todo o axé da Bahia, que significa força e energia, coisa que nenhuma outra terra tem! 

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* GASPAR, Lúcia. Acarajé. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. Disponível em:https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/acaraje/. Acesso em: 30 jul. 2021.

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Manuela Tchoe

Escritora baiana, vive desde 2005 na Alemanha, onde trabalha como executiva de marketing. É autora da coletânea de contos "Ventos Nômades" e do romance "Encontro de Marés". Também escreve sobre a vida de imigrante, viagens e literatura no seu blog pessoal "Baiana da Baviera".