04/03/2019 Eveline de Abreu Textos contemporâneos
© Eveline de Abreu
A intenção era fazer um quibe de forno vegetariano, mas acabei malocando um bifinho de hambúrguer no meio do trigo em grão, sob o pretexto de dar a liga. E deu.
Em vez de meio a meio nas porções, desmanchei a carne em três vezes a quantidade do trigo moreno, previamente amolecido n'água e, em seguida, espremido numa peneira o mais possível.
Cenoura e abobrinha de casca verde-escura foram amaciar no fogo pra depois virarem purê nos dentes do garfo.
Com o auxílio do meu lindo hachoir antigo, garimpado num vide-grenier provençal, piquei de uma só vez cebola, alho, tomate, salsinha e bastante hortelã.
A postos: um ovo com a gema já separada de sua clara; sumo de limão; gengibre em pó sem exageros, sal e páprica-doce bem vermelhinha.
Ao lado, azeite-de-oliva, terrina refratária e pincel.
Mão na massa. Na tigela que guarda o trigo e a carne, fui juntando o purê de legumes, os temperos picadinhos, a clara de ovo, o sumo de limão, o sal, o gengibre e a páprica-doce em pó.
A mistura foi transferida pra terrina untada com azeite. Pincelei a gema na superfície, pra ajudar a dourar; e fiz riscas com a ponta afiada da faca, pra evitar a massa rachar no calor do forno, pré-aquecido a 220ºC. Assim, quando dourar por fora terá cozido por dentro; mas eu confio muito na astúcia de espetar um palito pra testar o ponto.
No jantar, apresentei a belgas e franceses a versão desta iguaria que nos chega com os sírio-libaneses no final do século XIX, e que soubemos integrar com graça e naturalidade à mesa brasileira. Comeram e aplaudiram.
Em tempo: meu Quibe bem Mentiroso foi servido ao lado de uma também falsa coalhada-síria (por inércia, usei uma faissele de leite de cabra comprada pronta); pasta de grão-de-bico (houmous bi tahini), ornada de gergelim dourado torrado com sal, o gersal; e charutões recheados de arroz-com-lentilha (mjadra) porque na falta da folha de vinha e da couve-manteiga, me valeu um repolho verde-escuro, cuja folha é irrdutivelmente rebelde, de tão espessa e encrespada.
Todos, prato principal e coadjuvantes, foram regados, antes de passarem à mesa, com azeite-de-oliva (que não participou do cozimento). Limão e alho espremidos e misturados pra pingar no quibe.
Promessa: os pratos acessórios terão, cada um, uma receita à parte, pra história deste quibe não ficar muito comprida.
Viva o quibe! O quibe é nosso!
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O que é, o que é...
Faissele – nome francês para designar queijo fresco, branco e cremoso de leite cru de vaca ou cabra.
Hachoir – faca com dois cabos e lâmina em forma de meia-lua usada para picar temperos.
Vide-grenier – ao pé-da-letra, esvaziar o sótão; feira realizada por particulares quando são vendidos objetos pessoais de segunda-mão a preço de banana.
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PORÇÕES OU BOCADOS PARA OITO PESSOAS COM AQUELE APETITE:
150 gramas de carne moída macia e magra, o tal bifinho de hamburguer (steak haché)
450 gramas de trigo de quibe
3 cenouras médias
1 abobrinha pequena
1 cebola grande
4 dentes de alho
1 kg e meio de tomate médio gordo e corado
1/2 molho de salsinha
1 molho de hortelã bem folhudo
1 ovo
2 limões
1 palito
gengibre em pó sem exageros
sal a gosto
páprica-doce só pra realçar a cor
azeite de oliva pra untar o pirex e dar brilho ao prato depois de pronto
Publicitária e redatora. Descobriu a vocação para ensinar quando dirigia a assessoria de comunicação de um órgão público e precisou treinar e capacitar estudantes de jornalismo. Desde 2007 na Europa, adaptou esta experiência exitosa à versão digital e fundou a Incubadora de Escritores – serviço on-line de análise e parecer, apoio no desenvolvimento de textos, capacitação e revisão de conteúdo. A nostalgia do Brasil a levou a cozinhar e anotar receitas, na tentativa de compensar pela boca a saudade que lhe invadia o coração. O resultado tem sido a culinária natal, reinventada com produtos locais, e textos de dar água na boca.