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Sororidade

16/11/2018 Marcelle Silva Terceiro Setor e Cidadania

 Integrantes da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, em 1930. (Fonte: Wikimedia Commons Brasil).

Sororidade é uma palavra que tem sido muito mencionada em redes sociais, posts na internet, artigos de revistas femininas e rodas de conversas. Mas afinal, o que significa este termo, quais as razões de sua popularização no mundo contemporâneo e por que é importante praticá-la?

Para começar, podemos afirmar que a origem do termo vem do latim soror, que significa irmã, sendo considerada a versão feminina da palavra fraternidade. De maneira resumida, sororidade significa sentimento de irmandade, coletividade, união entre as mulheres, baseado na empatia e companheirismo.

Acredito que o termo vem sendo utilizado mais frequentemente devido à popularização e à expansão do movimento feminista, que, para algumas especialistas, está vivendo a sua quarta onda na atualidade, muito vinculada ao ciberativismo e à ação do feminismo na internet. Na realidade, o feminismo possui tantas vertentes, correntes teóricas e fases históricas que o mais correto seria falar em feminismos. Para se ter uma ideia do grau da diversidade dentro do que entendemos como movimento feminista, não existe consenso nem mesmo entre as feministas a respeito da forma como o movimento deveria ser conduzido, dos modos de se praticá-lo, dos instrumentos de luta e até mesmo dos temas e demandas que devem fazer parte da agenda. Como exemplo dessa variedade, tem-se o feminismo negro, que fez duras críticas ao feminismo mais tradicional, ao denunciar que este último não contemplava as lutas e dificuldades das mulheres negras.

Apesar da grande variedade de correntes dentro do feminismo, inúmeras mulheres que têm atitudes e promovem ações feministas, muitas vezes, nem se enxergam como tal, rechaçando o termo por considerá-lo ultrapassado, desnecessário ou até mesmo pejorativo. Acredito que esta resistência em se autodeclarar feminista por parte de algumas mulheres deve-se ao fato do feminismo em geral ter sido, durante muito tempo, associado às vertentes mais extremas dentro do movimento feminista, as quais pregavam ações mais enfáticas na luta contra o patriarcado, com militantes ruidosas e que condenavam até mesmo o uso de maquiagens, salto alto, depilação ou qualquer artifício utilizado para colaborar com a objetificação sexual da mulher. Somada a uma bem-sucedida campanha difamatória contra as mulheres feministas, que eram vistas como rebeldes e fora do padrão estético predominante, a associação dos movimentos feministas em geral, com setores mais enérgicos e intransigentes do feminismo, gerou uma aversão ao termo entre alguns homens e também entre muitas mulheres, que não queriam ser associadas às feministas mais extremadas. Assim sendo, muitas garotas diziam ser – e algumas ainda se dizem – femininas e não feministas, como se feminista fosse por si só algo negativo e oposto à feminilidade. Deriva dessa percepção distorcida também o termo “feminazi”, utilizado para desqualificar mulheres que são consideradas feministas mais intransigentes.

Para facilitar a exposição, não aprofundarei aqui o debate sobre os diferentes tipos e correntes teóricas do feminismo, pois outras autoras já fizeram este trabalho numa linguagem bastante acessível. Meu foco estará na importância de se praticar a sororidade, algo que os movimentos feministas já vêm discutindo há bastante tempo, mesmo em ondas anteriores. Para todos os espectros do feminismo, praticar a sororidade é algo fundamental, pois, sem união entre as mulheres, é mais difícil avançarmos na luta pela igualdade de direitos entre os gêneros. Na contemporaneidade, a sororidade ganha ainda mais destaque devido à popularização do termo fora dos círculos militantes, por meio da massificação da internet e das redes sociais e como fruto do engajamento de celebridades, pessoas públicas, lideranças femininas e da divulgação do termo nas mídias em geral.

Do meu ponto de vista, praticar a sororidade é importante não só porque é uma maneira de fortalecer a luta pelos direitos das mulheres, mas também por ser uma ferramenta que nos permite combater alguns paradigmas culturais que nos foram incutidos desde muito cedo e que atrapalham nossas relações interpessoais sem que nos demos conta isso. Alguns exemplos comuns dessas crenças ou formas de pensar que são muitas vezes repetidas como verdades absolutas são: “não se pode confiar em mulher”; “mulher gosta de competir”; “mulheres adoram fofocar”; “mulheres não se arrumam para os homens, mas para outras mulheres”; “onde tem muita mulher junto dá confusão” e por aí vai. Acredito que estas crenças limitantes nos são ensinadas, incutidas e repetidas como mantras desde que somos meninas, muitas vezes, com a intenção de nos alertar e preparar para a futura concorrência do “mercado matrimonial”. Como resultado deste estímulo para não confiarmos umas nas outras, para estarmos sempre competindo, acabamos deixando de praticar a sororidade por estarmos no piloto automático. Por outro lado, aos meninos é ensinado, desde cedo, a ideia de que têm que trabalhar em equipe, de que um amigo deve encobertar a mentira do outro em casos de traição, de que devem guardar segredos entre eles e etc.

Felizmente, observo que alguns pais e mães das novas gerações já estão criando seus filhos de maneira mais igualitária e ensinando as meninas a serem mais cooperativas entre si, menos passivas e mais independentes. No entanto, algumas práticas e crenças como as citadas anteriormente já estão tão enraizadas que as mantemos e reforçamos inconscientemente. E como combater estas crenças limitantes? Praticando a sororidade no nosso cotidiano; estando alerta para a criação de vínculos e união entre as mulheres que buscam objetivos em comum; estando atentas para apoiar nossas colegas, irmãs e amigas, bem como as mulheres desconhecidas que, muitas vezes, não tiveram as mesmas oportunidades que nós; ajudando profissionalmente outras mulheres e evitando julgar as outras mulheres por suas escolhas, estilo de vida ou limitações. Os motivos que nos levam à criação deste sentimento de irmandade podem ser pessoais ou profissionais, familiares ou sociais; não importa! O que vale é romper com ideias restritivas e que nos impedem de apoiarmos umas às outras.

Isso não significa que não devamos ajudar os homens só pelo fato de serem homens, mas que não deixemos de ajudar outras mulheres só porque são mulheres e, portanto, consideradas rivais em potencial (seja no ambiente de trabalho, no clube, na família, entre grupos de amigos, etc). Praticar sororidade é um ato de amor para com aquelas que enfrentam as mesmas dificuldades que nós enfrentamos por serem mulheres. Ninguém sabe mais das dificuldades de uma mãe de primeira viagem do que outra mulher que passou pelo mesmo desafio, por exemplo, assim como nenhum homem vai entender tão bem quanto outra mulher os medos de se estar sozinha num lugar violento e machista.

É óbvio que a sororidade em si não resolve todos os problemas femininos, mas ela certamente pode nos ajudar a aliviá-los. Isto se torna ainda mais evidente quando estamos em momentos ou situações de vulnerabilidade. Às vezes, apenas a presença e a compreensão de outra mulher, mesmo que estranha, tem o poder de nos reconfortar, nos traz um alívio só pelo fato de sermos ouvidas por alguém que sabe ou entende o que estamos sentindo naquele momento.

E se a sororidade é importantíssima em países nos quais as mulheres ainda não têm acesso a direitos fundamentais, também acredito que seja uma bandeira válida mesmo em sociedades onde os direitos das mulheres parecem estar consolidados, pois isto não é uma garantia de que nunca haverá um processo de perda de liberdades no futuro. Como exemplo do retrocesso ocorrido no mundo contemporâneo, podemos citar a perda de direitos no Irã e no Afeganistão, onde as mulheres possuíam certas liberdades no passado que foram suprimidas após mudanças em seus governos.

Por fim, apesar da popularização atual do termo sororidade estar vinculada à quarta onda feminista, acredito que uma mulher não precisa se considerar feminista para praticá-la. A empatia por outras mulheres é algo que pode e deve ser estimulado por todas nós, como forma eficaz de se combater noções preconcebidas sobre uma suposta competição natural entre as mulheres, que podem ser ideias arraigadas tanto em nossa sociedade de origem quanto naquela que escolhemos para viver.

 

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Marcelle Silva

Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Atualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre empreendedorismo social e empoderamento feminino na Índia, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É Doutora em Ciência Política pela Universidade de Campinas (UNICAMP), mestre em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNICAMP/UNESP/PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP.